Nem em ditaduras Judiciário liderou regulação de redes sociais, como STF quer fazer
Decisão pode colocar Judiciário como pioneiro em regulamentação direta de plataformas digitais
Uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de assumir a regulamentação das redes sociais, sem passar pelo Congresso Nacional, pode transformar o Brasil em um caso inédito no cenário global.
Mesmo em regimes autoritários conhecidos por legislações restritivas, como Venezuela, Rússia e Turquia, a regulação das redes foi conduzida pelo Legislativo, mantendo ao menos uma fachada de respeito às atribuições formais dos poderes.
O marco dessa movimentação no STF é o julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Atualmente, essa norma determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos publicados por usuários se houver descumprimento de uma ordem judicial de remoção.
No entanto, a Corte sinaliza que pode não apenas declarar o artigo inconstitucional, mas também criar novas regras para obrigar as redes a removerem conteúdos de maneira proativa, com diretrizes a serem estabelecidas pelos próprios ministros.
O avanço do ativismo judicial
O debate no Brasil contrasta com o modelo adotado em democracias consolidadas como Alemanha, Austrália e Reino Unido, onde a regulamentação das plataformas foi conduzida pelos respectivos parlamentos.
Na Alemanha, pioneira nesse tipo de regulação, a Lei de Fiscalização de Redes (NetzDG), aprovada em 2017, obrigou plataformas a removerem conteúdos "manifestamente ilegais" em até 24 horas após notificação.
No Brasil, o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, foi amplamente debatido no Congresso, mas acabou travado diante da resistência de parlamentares e da sociedade civil, que consideraram o texto uma ameaça à liberdade de expressão.
A lacuna legislativa abriu espaço para o STF, que, diante de episódios como a invasão ao Congresso e ao próprio Supremo em janeiro de 2023, intensificou seu ativismo para tratar das redes sociais como um “risco à democracia”.
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Exemplos internacionais: entre censura e liberdade
Nos últimos anos, o avanço da regulamentação das redes sociais tem dividido opiniões em todo o mundo. Enquanto democracias buscam equilibrar o controle de discursos perigosos e a preservação da liberdade de expressão, regimes autoritários frequentemente utilizam leis com termos vagos para reprimir dissidências e controlar narrativas.
- Alemanha: A NetzDG foi um marco global, mas gerou críticas por criar insegurança jurídica e censurar até mesmo conteúdos legítimos, como no caso de Mike Samuel Delberg, ativista judeu que teve seu vídeo de denúncia contra antissemitismo removido pelo Facebook.
- Rússia: Inspirada na NetzDG, aprovou em 2017 uma lei que criminalizou conteúdos vagos e ampliou a censura estatal. A situação piorou após a invasão da Ucrânia, quando penas de até 15 anos de prisão foram instituídas para críticas às forças armadas.
- Austrália: O Online Safety Act exige a remoção de conteúdos ofensivos, mas enfrenta polêmica devido à subjetividade de termos como "moralidade aceita". Recentemente, o governo também debateu o uso de tecnologia de verificação de idade para acesso às redes, suscitando preocupações sobre privacidade.
- Venezuela: A "Lei Contra o Ódio" prevê punições severas, de até 20 anos de prisão, por discursos considerados discriminatórios, mas é amplamente utilizada para silenciar opositores.
Nos países democráticos, o Legislativo tem atuado como moderador, suavizando propostas que poderiam gerar censura. No Brasil, o risco apontado por especialistas é que o protagonismo do STF inviabilize esse equilíbrio, centralizando decisões que, em outros contextos, seriam amplamente discutidas.
Liberdade de expressão sob ameaça?
A principal crítica ao modelo de regulação sugerido pelo STF é que ele transfere para o Judiciário e as plataformas digitais responsabilidades que tradicionalmente cabem ao Legislativo e aos cidadãos.
Ao obrigar as redes a monitorarem e removerem conteúdos antes de qualquer decisão judicial, abre-se um precedente para interpretações subjetivas que podem comprometer a liberdade de expressão e fomentar a autocensura.
No entanto, defensores da posição do STF argumentam que as redes sociais são atualmente um “território sem lei”, onde desinformação, discursos de ódio e conteúdos perigosos prosperam sem controle. Para eles, a omissão do Congresso frente a esse tema justifica a intervenção do Judiciário.
Um futuro incerto para o debate democrático
A intervenção do STF no tema pode gerar um impasse político e jurídico sem precedentes. Para muitos, a centralização da regulamentação no Judiciário representaria uma ruptura com o princípio da separação dos poderes, enquanto outros acreditam que, diante da urgência de combater abusos nas redes sociais, o ativismo judicial se tornou inevitável.
O Brasil está em um momento crítico: equilibrar o combate ao abuso das plataformas sem comprometer a liberdade de expressão será o verdadeiro desafio. Qualquer que seja a decisão final do STF, ela certamente marcará um novo capítulo na história das relações entre tecnologia, política e democracia no país.
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